Primeira defesa de doutorado do PPGSF/RENASF Fiocruz Ceará traz à tona a urgência do cuidado integral à mulher em situação de violência

No início de agosto de 2025, a Fiocruz Ceará viveu um momento histórico com a realização da primeira defesa de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Saúde da Família (PPGSF/RENASF). A doutoranda Patrícia Pereira Tavares Alcântara apresentou sua tese sobre “Cuidado integral à mulher em situação de violência: planejamento participativo no território com a comunidade e a Estratégia Saúde da Família”, um tema que ultrapassa as barreiras acadêmicas e toca diretamente as feridas abertas da sociedade brasileira.

A escolha da pesquisa, segundo Patrícia, nasceu de um sonho: o de trazer visibilidade para um problema persistente e muitas vezes silenciado. “Trouxe para esta tese o sonho de problematizar uma dura realidade arraigada em nossa sociedade. Sonho de aumentar a visibilidade da necessidade de enfrentamento da violência contra a mulher, em especial na região do Cariri”, afirmou. Sua trajetória profissional sempre esteve vinculada à saúde da família, e foi nesse campo que encontrou espaço para alinhar ciência, cuidado e compromisso social.

O poder da escuta

A pesquisa não se limitou a análises distantes ou estatísticas frias. Patrícia construiu seu trabalho a partir da escuta ativa, do diálogo e da participação direta da comunidade e da Estratégia Saúde da Família (ESF). Reconhecendo a violência como um fenômeno sócio-histórico enraizado na cultura patriarcal e nas relações desiguais de gênero, a pesquisadora apostou em uma metodologia capaz de envolver mulheres, profissionais de saúde, gestores e lideranças locais.

O percurso incluiu desde a revisão de literatura e diagnóstico da realidade local até visitas de campo, georreferenciamento do território, reuniões com a gestão municipal e equipes de saúde, diálogos com informantes-chave, rodas de conversa em seminários temáticos e pesquisa-ação, que contém elevado caráter participativo e emancipatório. O processo culminou na elaboração de um plano de ação participativo, construído coletivamente, e na implementação de medidas práticas no território. “Era fundamental oportunizar voz e escuta às mulheres que vivenciam essa realidade, muitas vezes sem conhecer os caminhos para enfrentá-la. O planejamento participativo possibilitou transformar o território em um espaço de diálogo e solidariedade”, destacou.

A violência invisível

Entre os principais achados, o estudo expôs uma dura realidade: mulheres em situação de violência chegam a procurar os serviços de saúde de sete a oito vezes antes de revelarem o abuso. Muitas vezes, a violência não é identificada nem abordada diretamente pelos profissionais, o que a torna um problema “invisível”, tratado apenas por meio das consequências físicas e psicológicas.

“Essa invisibilidade mostra a marginalização da mulher na sociedade atual. Embora vivamos em uma sociedade majoritariamente feminina, também vivemos numa sociedade misógina e machista em que a mulher não tem voz de poder, ela sofre exclusão e violência. Isso reforça a complexidade do problema e a necessidade de uma atuação mais resolutiva da rede de assistência”, explicou Patrícia. Para a pesquisadora, a qualificação dos profissionais de saúde é indispensável para identificar as diversas manifestações da violência e garantir uma assistência integral e acolhedora.

Resultados que se transformam em prática

Os frutos da pesquisa já se fizeram sentir no território. O plano de ação participativo foi apresentado em reunião comunitária no Sítio Carrapato, ampliando o debate sobre o enfrentamento à violência. Na rádio comunitária da região, foi veiculada uma vinheta informativa sobre a rede de cuidado disponível às mulheres. A feira de agricultores locais também se transformou em espaço educativo, onde a população pôde se informar sobre a problemática. Paralelamente, foram buscadas parcerias para ampliar a formação de agentes comunitárias de saúde, fortalecendo a linha de frente do cuidado.

Segundo Patrícia, a abordagem participativa trouxe um diferencial em relação às práticas já existentes: “O enfrentamento da violência exige uma rede multiprofissional e intersetorial, mas também espaços coletivos de diálogo e protagonismo. O planejamento participativo evidenciou que a construção conjunta fortalece vínculos solidários e permite práticas inovadoras, transparentes e democráticas.”

Para o orientador da pesquisa, prof. Dr. Fernando Carneiro, existe uma dimensão da pesquisa, tanto no campo científico quanto no impacto direto na sociedade. “Ela não apenas estudou a problemática, mas construiu soluções que começaram a ser aplicadas ainda durante a realização do doutorado, mostrando que a ciência pode e deve transformar a realidade. Sua contribuição vai além do conteúdo da tese: ela gerou novos caminhos metodológicos de produção de conhecimento ancorados no SUS e no diálogo com a comunidade, com resultados concretos e aplicáveis. Sua pesquisa carrega um peso técnico e político, porque toca em um problema delicado e urgente, que exige investimento de políticas públicas para garantir a proteção da saúde e da vida das mulheres em situação de violência”.

Esse momento de consolidação da pesquisa também resgata a memória da própria construção do Programa de Pós-Graduação em Saúde da Família, fruto de um esforço coletivo entre a Fiocruz Ceará e as universidades públicas do Ceará. Mais do que uma conquista acadêmica, a primeira defesa de doutorado caracteriza a realização de um projeto pensado para transformar a realidade da atenção primária no Brasil.

“É uma enorme satisfação participar da banca que avalia a Patrícia, primeira doutora formada em Saúde da Família aqui na Fiocruz Ceará. Essa conquista simboliza não apenas um feito individual, mas a concretização de um projeto iniciado há 17 anos, quando começamos a sonhar com a formação de mestres e doutores capazes de construir um modelo de saúde da família genuinamente brasileiro. Desde o início, sabíamos que não poderíamos simplesmente reproduzir experiências internacionais, mas sim desenvolver soluções alinhadas às realidades da Amazônia, do Nordeste, das grandes cidades e de todo o país. Ver hoje a Patrícia, profissional comprometida com a saúde da família no Cariri, alcançar essa conquista é a prova de que esse esforço coletivo gerou frutos concretos. É um momento que traduz a vocação da Fiocruz Ceará: formar pesquisadores comprometidos com a transformação social e com o fortalecimento do SUS em sua base mais essencial”, afirmou Dr. Carlile Lavor, médico e pesquisador da Fiocruz Ceará.

Da ciência para a vida

O impacto do trabalho vai além do campo acadêmico. Para a pesquisadora, ele abre caminho para que políticas públicas sejam aprimoradas e inspirem mudanças reais nos serviços de saúde. “Esse estudo amplia a criação de espaços de discussão e subsidia novos trabalhos científicos. Mais do que isso, contribui diretamente para as mulheres em situação de violência, ao propor um plano de ação construído com gestores, profissionais e usuárias, alinhado à realidade local”, defendeu.

O reconhecimento já veio em forma de publicações relevantes em periódicos científicos nacionais, como a Revista Ciência & Saúde Coletiva e a Revista Enfermagem Atual In Derme, além de premiações que confirmam a importância da pesquisa no cenário da saúde coletiva.

Uma semente para outras regiões

Patrícia acredita que os resultados obtidos no Cariri podem ecoar em outras partes do país, fortalecendo o debate sobre violência de gênero e subsidiando novas práticas de cuidado. “O estudo mostrou que é possível ressignificar territórios, criar soluções criativas e, sobretudo, aumentar a responsabilidade social diante dessa problemática. Esperamos que ele inspire outros contextos e contribua para ampliar a luta contra a violência de gênero”, concluiu.

Para reforçar essa conquista, a coorientadora da tese também destacou a amplitude e profundidade da pesquisa, conectando teoria e prática no campo da saúde da família.

“A tese da Patrícia traz um impacto teórico e prático de grande relevância. Primeiro, porque insere o tema da violência contra a mulher de forma estruturada dentro da saúde da família, abordando-o numa perspectiva intersetorial e participativa, que envolve não apenas as equipes de saúde, mas toda a rede de atenção e proteção. Além disso, o trabalho dá visibilidade a um problema gravíssimo em nossa região e sistematiza dados que mostram como a violência de gênero se concretiza no cotidiano, oferecendo ao mesmo tempo caminhos para a prevenção, para o cuidado e para a promoção da saúde. O mérito dessa pesquisa é mostrar que a atenção primária tem um papel central, pois é na unidade de saúde que as mulheres mais procuram apoio em diferentes fases da vida. Assim, os profissionais têm inúmeras oportunidades de dialogar com elas, desenvolver estratégias comunitárias e criar, junto com famílias e territórios, novos mecanismos de enfrentamento. É essa combinação de densidade científica e compromisso social que fortalece o nosso doutorado e reafirma a Fiocruz Ceará como referência na formação de pesquisadores comprometidos com problemas reais da sociedade”, destacou a profa. Dra. Vanira Pessoa, coordenadora de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (CAAPS/Fiocruz) e coorientadora da pesquisadora.

Publicações

Nos seguintes links, você pode acessar as pesquisas publicadas pela discente de doutorado do PPGSF/Renasf:
Cuidado integral às mulheres vítimas de violência: desafios para a Estratégia Saúde da Família, que objetivou refletir sobre o enfrentamento da problemática de violência contra a mulher frente a prestação do cuidado integral através da participação social. Este artigo foi publicado na Revista Enfermagem Atual In Derme.
Planejamento participativo na assistência às mulheres vítimas de violência. O presente estudo objetivou identificar a produção científica acerca da correlação entre o planejamento participativo e a assistência às mulheres vítimas de violência. Este artigo foi publicado na Revista Arquivos de Ciências da Saúde da UNIPAR.
Cuidado integral às mulheres vítimas de violência, cujo objetivo foi identificar a produção científica acerca do cuidado integral às mulheres vítimas de violência. O artigo foi publicado na Revista Ciência & Saúde Coletiva.